As transformações culturais da China representadas na obra do cineasta Jia Zhang-ke, agora sob o olhar sensível de Walter Salles. Respeitosa porém atenta, a direção do brasileiro ao mesmo tempo que mantém a assinatura e proporciona momentos cativantes, se apropria da estética cinematográfica do protagonista e promove uma simbiose entre vida e arte.
Um passeio pelas ruas de Fenyang com Hongwei Wang, ator e amigo de longa data, dá início a um delicado retorno às origens. Surgem memórias, reencontros e depoimentos de profissionais, conhecidos e parentes que fizeram parte da história do realizador de ‘Um Toque de Pecado’ (2013).
Neste trajeto, os locais da infância se confundem com os cenários de produções como ‘Um Artista Batedor de Carteiras’, lançado na década de 1990, ou mesmo ‘Plataforma’ (2000), considerado um retrato da juventude chinesa dos anos de 1979 a 1989. Tais considerações estão presentes nos diálogos e testemunhos, tudo reiterado pela costura entre ficção e realidade.
Da mesma forma, as mudanças na economia e no papel do operário são tratadas no tocante ‘Em Busca da Vida’ (2006), título também permeado por cenas poéticas, aproveitadas sabiamente pela montagem. Aliás, Walter Salles, junto com o fotógrafo Intis Briones, consegue adaptar a estética do documentário ao estilo e tempo narrativo de Jia Zang-ke.
Com planos gerais, médios e pausas maiores, ainda há espaço para o uso do contra-plongée, ressaltado em sequências como a passagem do cineasta pela Torre Eiffel do parque ‘O Mundo’ em Pequim, nome de um de seus trabalhos de 2004. Desde a pré-produção, a filmagem e até a finalização, o processo todo é destacado nas falas dos integrantes da equipe, porém sem didatismo.
Para além disso, as tristezas e felicidades do Lalai, apelido dado a ele quando ainda era uma criança, entram em jogo. Da pura descontração cotidiana às mais delicadas revelações, tudo parece ter sido capturado com a maior naturalidade possível e resultado em algumas cenas cativantes, marca da identidade artística do diretor brasileiro.
“O cinema é público, mas pode ser bem pessoal”, uma das tantas reflexões feitas pelo protagonista, estas que também se estendem a questionamentos sobre o processo de globalização, as novas mídias e até mesmo a americanização da cultura. Por detrás destas facetas, estão o homem e as dificuldades em lidar com as cobranças, perdas e as culpas adquiridas ao longo da trajetória.
‘Jia Zang-ke, Um Homem de Fenyang’ adota um ritmo mais literário, por vezes, contido, porém revela-se um grato documentário voltado para os apreciadores da sétima arte. Além disso, marca o retorno de Walter Salles ao gênero e também a estreia frente a uma produção audiovisual que celebra o cinema. Recomendo!